UM PROBLEMA QUE PRECISAMOS CORRIGIR – por ALIPIO REIS FIRMO FILHO
UM PROBLEMA QUE PRECISAMOS CORRIGIR
Ser relator das contas de um organismo público não é tarefa fácil. Posso dizer de mim mesmo que nesses quase seis anos de desempenho da função no Tribunal de Contas do Estado do Amazonas, os desafios têm sido muitos. Sanear um processo, a fim de submetê-lo à apreciação de meus pares, tem-me exigido não apenas o conhecimento técnico, mas também e principalmente uma boa dose de paciência, destreza e espírito de colaboração. Até o julgamento final, muitas são as etapas percorridas.
O relator é quem dá o rumo, aponta o caminho a ser seguido, indica a direção correta do curso processual. Podemos mesmo compará-lo a um ourives que, de posse da matéria bruta, vai pacientemente lapidando-a, dando-lhe o brilho e a forma desejados até que finalmente obtenha o produto final. Entretanto, diferentemente do que ali acontece, “a jóia” obtida não repercute apenas no âmbito da individualidade. Em absoluto. Ela é transcendente. Vai muito além dos aparentes limites pessoais. Alcança a família, a vida social, acadêmica, profissional e moral de quem é julgado. Isso tudo sem falar nas repercussões de ordem política e jurídica do agente, traduzidos em inelegibilidades, processos judiciais por condutas ímprobas, além de um cem número de outras consequências.
Não bastasse isso, o próprio relator pode ser chamado à responsabilização. Talvez, por uma conduta negligente, outras vezes por ter “ofendido” interesses que sempre foram deixados debaixo do tapete. Ou seja, as consequências processuais podem não se limitar à esfera do julgado mas alcançar também o raio de atuação do julgador.
Portanto, ao contrário do que à primeira vista possa parecer, é árdua, muito árdua, a missão do relator à frente dos processos de sua relatoria. Mas nada que o binômio “autoridade-responsabilidade”, não possa resolver. Afinal de contas, conforme preconiza o evangelho “a quem muito é dado muito será exigido”. Até aí tudo bem. Não há porque se queixar de grandes cobranças quando se é titular de um igual número de prerrogativas. Em outras palavras, só faz sentido cobrar mais de quem pode oferecer mais. É o que diz a parábola dos talentos.
Mas essa lógica parece afastada quando, de um lado, limita-se o quesito da autoridade e de outro, mantém-se intocável o grau de responsabilidade. E aqui reside o ponto central desses nossos comentários.
Quero me debruçar agora sobre a forma como estão sendo conduzidas as auditorias e inspeções no Tribunal de Contas do Estado do Amazonas, em especial, no tocante aos municípios interioranos amazonenses.
Até setembro de 2009, a escolha do relator das contas dos municípios interioranos amazonenses sempre ocorria após a instrução processual (realizada pela Secretaria Geral de Controle Externo) e a emissão do parecer do Ministério Público de Contas. Ou seja, somente após a finalização das fases mais importantes do processo – realização das auditorias e inspeções, oitiva dos gestores – é que o relator “aparecia” no curso processual. Nesse cenário, a escolha do relator era movida mais por uma exigência processual – a final de contas, nem a Secex, nem o MPC possuem competência legal para levar o processo à pauta de julgamento – do que propriamente pela necessidade de o processo contar, desde o seu nascedouro, com alguém que lhe estivesse à frente, presidindo-o e conduzindo-o durante a realização de toda uma etapa investigativa e cognitiva, visando à avaliação das contas anuais. Em suma, o relator acabava sendo um legítimo incidente processual. Alguém que literalmente “pegava o bonde andando”.
Importante destacar que como as contas não possuíam relatores, era a presidência do Tribunal que praticava todos os atos processuais: autorizava a juntada de documentos, concedia vista processual, ouvia as partes envolvidas, conduzia as auditorias e inspeções, enfim, era ela que incorporava e realizava todas as funções inerentes às do relator. Até aí, tudo bem. Nada mais lógico.
O problema foi resolvido a partir de setembro de 2009. Desde essa data, as prestações de contas dos municípios interioranos amazonenses passaram a ser sorteadas bienalmente e previamente entre os Conselheiros e Conselheiros Substitutos. O primeiro biênio sorteado foi o de 2008/2009. Depois vieram os demais: 2010/2011, 2012/2013 e mais recentemente 2014/2015.
Sem dúvida alguma que a adoção dessa sistemática repercutiu muito positivamente na avaliação das contas municipais. Antes mesmos que as contas ingressassem no Tribunal elas já possuíam o seu relator. Este, por sua vez, poderia acompanhar mais de perto a gestão municipal, não apenas a partir do momento da protocolização da prestação de contas no TCE-AM mas durante a própria gestão em si, no decorrer do exercício financeiro, num autêntico e legítimo controle concomitante. Houve também substanciais progressos quanto ao tempo de julgamento das contas, atualmente mais céleres.
No entanto, nada obstante tais avanços processuais, as equipes de auditorias e inspeções continuaram a ser conduzidas pela presidência do Tribunal. E aqui reside o núcleo desses nossos comentários.
Entendo que a partir do momento em que as contas já possuem relator caberá a ele essa responsabilidade. Ou, ao menos, ser ouvido previamente na escolha dos integrantes das equipes que realizarão os trabalhos. Afinal de contas, não é o relator que preside o processo? Não é ele que assinará debaixo de todo o conjunto probatório constituído nos autos assumindo toda a responsabilidade? Não é ao relator que serão atribuídas eventuais falhas/virtudes existentes no curso processual? Pois bem. Já que existem tais responsabilidades não restam dúvidas que a elas deverão corresponder igual fatia de autoridade. Do contrário, os dois pratos da balança ficarão desequilibrados.
O problema aqui narrado muito se assemelha a um técnico de uma equipe esportiva que, devendo apresentar bons resultados, não tem o direito de escolher seus integrantes.
Não quero dizer com isso que a presidência do Tribunal não possui competência para continuar assumindo esse papel. Em absoluto. O que desejo destacar é que a realização das auditorias e inspeções diz respeito intimamente ao processo localizando-se, precisamente, em sua base. Delas depende fundamentalmente a verdade material dos fatos. É ato processual. E por ser ato processual deve e necessita ser conduzido por quem preside o processo: o relator. Aqui não está em jogo, evidentemente, a escolha de quem pode fazer melhor mas, antes de mais nada, quem tem legitimidade para fazê-lo.
Minha experiência no controle externo tem demonstrado – e lá se vão 20 anos – que a qualidade das provas produzidas num processo depende fortemente do nível dos levantamentos realizados nos trabalhos de campo. Uma boa auditoria resultará, seguramente, num conjunto probatório sólido o suficiente para uma perfeita e profunda avaliação das contas. Por outro lado, levantamentos mal conduzidos nos trabalhos de campo implicam igualmente em coletas de documentos e informações limitados, vulneráveis, insuficientes, facilmente justificáveis por gestores sem escrúpulos. Desta feita, as fases processuais posteriores – parecer do Ministério Público de Contas, Voto do Relator, Julgamento pelo Tribunal Pleno – poderão ser construídas sobre bases frágeis que seguramente não refletirão a real conduta do gestor. Daí a necessidade de as auditorias e inspeções serem efetivamente coordenadas e conduzidas pelo relator das contas com o apoio, evidentemente, da Secretaria de Controle Externo.
Não tenho conhecimento se o problema persiste em outro tribunal de contas no Brasil. Mas independentemente de onde ele se manifeste, entendo que a categoria dos Conselheiros Substitutos, por intermédio da Audicon, poderá refletir sobre sua melhor solução. Afinal, está em jogo a prerrogativa processual do relator e, com ela, todos os seus desdobramentos. Talvez a costura futura de um normativo de âmbito nacional que possa consolidar e uniformizar, de vez, todas as prerrogativas dos Conselheiros Substitutos se apresente como uma boa iniciativa. Uma tentativa de solução mais imediata, a meu ver, seria o início de tratativas junto à presidência dos tribunais que enfrentam igualmente o problema, visando a corrigí-lo na base do diálogo e do entendimento. Mas o que não podemos admitir, no meu entendimento, é que continuemos indefinidamente na situação presente, reféns de um modelo de controle há muito abandonado.
Para nossa reflexão.
ALIPIO REIS FIRMO FILHO
Conselheiro Substituto/TCE-AM