Manifestações populares e Orçamento – Correio Braziliense (01/07/2013)

Autor: Weder de Oliveira
 

Ministro substituto do Tribunal de Contas da União e professor de pós-graduação no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP)

 

As atuais manifestações populares estão conectadas a novas e históricas concepções sobre o orçamento público. Quase sempre visto, no Brasil, como mera reunião de números e estimativas de receitas e despesas, que não desperta maior interesse, peça de ficção, o Orçamento é um processo de decisões coletivas e de garantia de direitos.

 

Contrariamente a essa visão desinformada e diminutiva, em suas raízes e evolução contínua o Orçamento associa-se aos grandes movimentos históricos das democracias ocidentais, como a afirmação do Parlamento inglês sobre o rei na Revolução Gloriosa de 1688-1689, a independência dos Estados Unidos, a Revolução Francesa, a consolidação do Estado alemão sob o regime da monarquia constitucional no século 19, o surgimento do Estado do bem-estar social e a grave crise econômica atual.

 

Números e estimativas são apenas a ponta quantitativa e necessária de um iceberg de complexas decisões políticas, às vezes pretensamente coletivas, passadas e presentes, altamente impactantes e explicativas do que vivemos agora e viveremos no futuro. Tarifas mais caras, estradas malcuidadas, portos congestionados, elevada carga tributária, falta de recursos para a saúde e a educação, má distribuição de renda, corrupção? Parafraseando o bordão da campanha de Bill Clinton à Presidência dos Estados Unidos, em 1992, “é o Orçamento, estúpido!” (sem conotação ofensiva).

 

Para o processo orçamentário anual confluem as decisões de política macroeconômica, os embates partidários, os interesses federativos, a micropolítica das emendas parlamentares, os lobbies de sindicatos, grupos sociais e empresariais, a busca de garantia de direitos constitucionais, as opções de diminuir ou aumentar tributos, os modelos gerenciais da administração pública, as técnicas e teorias sobre decisões coletivas, os casuísmos eleitorais, a governabilidade e a cooptação política, a repartição do poder. Quem comanda o Orçamento comanda o poder. Por isso, as constituições o regulam. E a nossa o faz em grande extensão.

 

É um mundo de decisões de tamanha riqueza, que causam perplexidade a reduzida intensidade dos debates e a pouca e efêmera visibilidade que o processo recebe anualmente. Nele se revela se as demandas coletivas serão financiadas por tributos ou pela dívida pública. Decide-se, de forma expressa ou difusa (quase sempre), quem será beneficiado e quem arcará com os ônus das políticas públicas. Setores específicos ou a população em geral? Os de menor ou os de maior renda? A geração atual ou a futura?

 

Lembrando o ditado popularizado por Milton Friedman, “não existe almoço grátis”. Se não se paga por ele diretamente, paga-se indiretamente. Há sempre usos alternativos a serem considerados na alocação dos recursos coletivos. Haveria melhor destinação socioeconômica para os recursos aportados por entidades e bancos estatais na construção de estádios para a Copa do Mundo, como, por exemplo, erradicação dos lixões, duplicação de rodovias, construção de hospitais, redes de esgoto ou linhas de metrô? Milhares de manifestantes entendem que sim; outros milhares talvez entendam que não. Assim funciona a democracia. Mas democracia substantiva implica tomada de decisões bem informadas e em argumentações racionais. Essa discussão, ausente, não foi feita na hora certa.

 

Dessas manifestações populares, deveriam surgir mais ONGs destinadas a dissecar os orçamentos governamentais, do planejamento à entrega de resultados, indo além dos limitados objetivos de encontrar irregularidades, para buscarem o que é de alta relevância e está por ser alcançado: entender, divulgar amplamente e debater o que fazem e o que deixam de fazer os governos com o dinheiro público.

 

É longa a construção do conhecimento sistematizado sobre o destino dado aos tributos que a população entrega aos governos para promoção do bem-estar geral. O funcionamento da administração pública é intrincado. A transparência governamental ativa e útil está em lenta evolução, muitas vezes contaminada pelo vírus da propaganda vazia e personalista.

 

Se quisermos entender por que não recebemos os serviços que gostaríamos de receber, saber quem está ou não sendo beneficiado pelas escolhas coletivas feitas pelos representantes eleitos e por que a arrecadação tributária nunca parece ser suficiente, será preciso ampliar e reverberar as discussões anuais sobre os orçamentos e o planejamento estatal. Começar por aí é o caminho mais fácil para compreender a realidade do Estado brasileiro e as razões de boa parte de suas deficiências e sucessos.