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Controle Externo, Acessibilidade, Inclusão e Cidadania, por Luiz Henrique Lima

A acessibilidade transcende a mera adaptação de espaços físicos. Ela é, antes de tudo, um imperativo ético e jurídico que reflete o compromisso de uma sociedade com a dignidade e a igualdade. No Brasil, o controle externo deve desempenhar um papel crucial na promoção da acessibilidade, assegurando que políticas públicas e recursos sejam direcionados para garantir os direitos das pessoas com deficiência. A Constituição de 1988 consolidou a ideia de que o Estado deve atuar como um garantidor de direitos fundamentais, incluindo a promoção da acessibilidade. Sob a égide da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência e da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, os Tribunais de Contas têm a missão de monitorar e avaliar a implementação de políticas voltadas à inclusão. No contexto do controle externo, a acessibilidade assume múltiplas dimensões. Primeiramente, há a necessidade de garantir que os próprios órgãos de controle sejam modelos de inclusão. Isso envolve a adaptação arquitetônica de seus prédios, a utilização de tecnologias assistivas em suas plataformas digitais e a capacitação de seus servidores para atender adequadamente pessoas com deficiência. Em segundo lugar, os TCs devem atuar na fiscalização de políticas públicas que assegurem acessibilidade. Afinal, o controle externo é essencial para assegurar o uso eficiente dos recursos públicos. Isso inclui o monitoramento de obras públicas para assegurar a eliminação de barreiras arquitetônicas, bem como a garantia de inclusão nos sistemas educacionais e de saúde. A fiscalização do cumprimento de cotas de emprego para pessoas com deficiência, a exigência de que editais de licitação prevejam normas de acessibilidade e a implementação de indicadores para monitorar a inclusão social são exemplos de como esse papel pode ser exercido de forma efetiva. Outro aspecto relevante é a promoção da acessibilidade digital. Em um mundo cada vez mais conectado, assegurar que os portais públicos sejam navegáveis por pessoas com deficiência é tão fundamental quanto garantir acessibilidade física. Ferramentas como leitores de tela, foco visível e conteúdos em Libras são passos necessários para a inclusão. Ademais, por meio de ações de orientação e capacitação, é possível influenciar gestores a adotar uma postura de inclusão desde a concepção de projetos e políticas públicas. Mediante campanhas de sensibilização é possível e necessário fomentar uma mudança cultural, combatendo atitudes capacitistas e promovendo a valorização da diversidade. O TCU declarou o ano de 2025 como o Ano da Pessoa com Deficiência no Controle Externo Brasileiro. Ao promover a acessibilidade, o controle externo exerce o seu compromisso com a cidadania. É pela acessibilidade que se constrói uma sociedade plenamente democrática, na qual todos têm a oportunidade de contribuir e prosperar. Assim, os Tribunais de Contas tornam-se não apenas guardiões da legalidade, mas também defensores da dignidade humana. Essa é uma luta contínua e essencial. Porque acessibilidade não é privilégio, é direito. E o controle externo tem um papel inalienável na sua garantia. Luiz Henrique Lima é Conselheiro Substituto do TCE-MT e vice-presidente de Controle Externo da Audicon.

Mulheres e orçamento, por Luiz Henrique Lima

No mês de março celebra-se o Dia Internacional da Mulher. Multiplicam-se os debates e reflexões sobre as lutas e conquistas já alcançadas e sobre a necessidade de aprimorar políticas públicas específicas que assegurem às mulheres condições de exercerem seus direitos individuais, coletivos e sociais. Renovam-se compromissos de governantes com políticas de igualdade de gênero. Desde a Constituição Cidadã de 1988 houve muito progresso. O combate à violência contra a mulher ganhou fôlego a partir da Lei Maria da Penha. Iniciativas de diversidade e inclusão, nos setores público e privado, têm,embora lentamente, proporcionado maior acesso de mulheres a cargos de liderança e reduzido a disparidade na remuneração com os homens.  Todavia, ainda há muitos desafios a enfrentar. A secular cultura patriarcal e machista procura se reinventar, ora sob a máscara de um discurso ideológico conservador que tenta ridicularizar o feminismo, ora sob o manto de uma visão religiosa extremista que defende e justifica a subalternidade feminina na família e na sociedade como expressão de uma suposta vontade divina. É preciso debater e combater essa visão reacionária, tão mais perigosa porque dissimulada. Um dos principais cenários da luta pela igualdade de gênero é o orçamento público. Com efeito, nunca encontraremos alguém dizendo que é contrário, por exemplo, a medidas de prevenção à violência de gênero ou a instalação de Delegacias da Mulher. Isso na teoria e no discurso. Mas temos que verificar – e cobrar – a prática de gestores e legisladores.  Quais os recursos efetivamente destinados nas leis orçamentárias para a implementação das políticas de proteção às mulheres? Sem orçamento, as políticas públicas não saem do papel e das – vá lá – “boas intenções”. Tem mais. Conquistar recursos nas leis orçamentárias não encerra o assunto. A lei orçamentária contém uma “autorização de despesa”, que nem sempre é impositiva. Assim, muitas vezes um determinado projeto é incluído na programação orçamentária, mas, ao longo do exercício, os recursos são contingenciados, isto é, a sua execução fica bloqueada, sendo liberada apenas nos últimos dias de dezembro, quando já não há tempo para a sua aplicação e dessa forma os gestores conseguem “superávits”. Outra situação frequente é quando os recursos são remanejados para outras áreas, por meio de decretos de abertura de créditos suplementares, cuja autorização prévia é sempre generosamente concedida pelo Legislativo Portanto, depois da aprovação das leis, é preciso também acompanhar de perto o processo de execução orçamentária. Em 2024, o Ministério do Planejamento produziu o Relatório “A Mulher no Orçamento”, com informações de grande relevância sobre a execução de programas federais como saúde integral da mulher, autonomia econômica e igualdade no mercado de trabalho e enfrentamento de todas as formas de violência. É necessário que estados e municípios também realizem estudos semelhantes para os seus respectivos orçamentos, assegurando maior transparência e monitoramento pela sociedade quanto ao cumprimento dos compromissos assumidos. Luiz Henrique Lima é professor e vice-presidente de controle externo da AUDICON – Associação Nacional de Ministros e Conselheiros Substitutos dos Tribunais de Contas.

Securitização de recebíveis municipais – cuidados para além daqueles da Lei Complementar 208/2024, por Alexandre Manir Figueiredo Sarquis

O Direito Financeiro é um grande desconhecido no ensino jurídico brasileiro. Sua inclusão no programa do exame nacional (a partir da 38º edição) pouco chamou a atenção da academia, que ainda relega o assunto às disciplinas optativas, se é que as oferecem. Ainda assim, há cátedras estabelecidas de Direito Financeiro, por exemplo, na Universidade de São Paulo e na Universidade Federal do Maranhão, entre outras. Trata-se da disciplina jurídica dos ingressos e das saídas de recursos públicos, do direito do orçamento público, da regulação jurídica do endividamento, do primo irmão do direito tributário – pelo lado das receitas – e do primo irmão do direito das licitações, contratos e convênios – pelo lado das despesas. É também um ramo repleto de peculiaridades que o afeiçoam ao Direito Constitucional, tanto que amiúde é debatido no STF. Ao contrário de outros ramos do direito, em que os objetos de interesse assumem natureza jurídica de mero ato administrativo, tais como o lançamento tributário ou o contrato administrativo, no Direito Financeiro, o principal objeto de interesse adota natureza jurídica de lei propriamente dita: o orçamento público é uma lei ordinária anual. Se as normas que regulassem a produção do orçamento estivessem a ele hierarquicamente equiparadas, isto é, se fossem outras leis ordinárias, restaria a impressão de que as regras seriam compostas conforme se anda, a cada ciclo que se inicia. Assim que um naco do Direito Financeiro consta diretamente na Constituição Federal, enquanto outro naco consta em legislação complementar, a exemplo da LRF e da Lei 4.320/1964 (recebida como lei complementar pela CF/88). A presunção é que leis complementares – diferentemente de leis ordinárias – propiciam maior rigidez, mas esse não tem sido necessariamente o caso no Brasil: desde a Constituição de 1988 promulgamos 156 leis complementares (da 56 de 1988 até a 214 de 2025), grande parte delas regulando algum aspecto do Direito Financeiro, enquanto passaram-se apenas 37 leis orçamentárias. Refletindo sobre esse panorama, conclui-se ser essencial que pressões sazonais e maiorias circunstanciais sejam obtemperadas, pelo texto direto da norma complementar, pela Constituição, pela prática, pela doutrina e pelos julgamentos dos Tribunais de Contas e do Judiciário. Trata-se do grande desafio de conciliar a vontade republicana, vocalizada pelo Poder Legislativo. LEI COMPLEMENTAR 208/2024 Nesse cenário é que veio a luz a Lei Complementar 208/2024, introduzindo o art. 39-A na Lei 4320/1964 (marco dos orçamentos públicos). Nele, fica autorizada a cessão onerosa de direitos tributários e não tributários a pessoas jurídicas ou fundos de investimentos. O projeto iniciou-se pela mão do incansável e estimado Senador José Serra (PLS 204/2016 https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/125723), e desde logo exibiu uma indisfarçada inspiração na norma paulista (Lei 13723/2009 https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2009/lei-13723-29.09.2009.html) que tem disposição semelhante para viabilizar as cessões à Companhia Paulista de Securitização – CPSEC. É bem verdade que há outras experiências, por exemplo, dos governos dos Estados do Piauí, de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul, bem como do município de Belo Horizonte (veja o artigo de Edson Ronaldo Nascimento para uma revisão de tais experiências https://www.conjur.com.br/2024-ago-02/a-securitizacao-de-recebiveis-e-a-lc-208-2024/). SECURITIZAÇÃO A lei ficou conhecida pela expressão “securitização”, que é um anglicismo, uma palavra transplantada do inglês, jurisdição em que as securities são o que conhecemos no Brasil como títulos e valores mobiliários. Securitização é, portanto, a transformação de um ou de alguns contratos em outros (geralmente muitos outros), sendo estes últimos considerados valores mobiliários. Estes valores mobiliários gozam de um mercado secundário bem regulado (CVM), o que potencializa sua segurança e volume de operações. A técnica existe desde há muito, mas ganhou certo impulso no mercado de endividamento público com o chamado “Brady Plan”. Por meio dele, contratos gigantescos e não performados de países em desenvolvimento foram trocados por títulos – os bradies – com prazos e valores mais atraentes para os consumidores de instrumentos financeiros habituais, em uma operação garantida pelo World Bank do FMI. Muito rapidamente floresceu o mercado secundário dos bradies o que, por sua vez, atraiu mais credores e mais países devedores – inclusive o Brasil, que inicialmente havia se mostrado reticente. Com isso, os credores originais limitaram sua exposição e devedores reduziram o custo de captação. Foi o típico ganha-ganha que ocorre quando são quebradas barreiras burocráticas, por detrás das quais estavam represados legítimos desejos dos mercados e da administração pública. A técnica contribuiu decisivamente para a solução da crise da dívida externa de muitos países nos anos 80, e da “década perdida” no Brasil. Mas aqui se iniciam os conflitos da securitização com o Direito Financeiro corrente. Isadora Parmigiani de Biasio, estudando as novidades legislativas, já havia alertado para a necessidade de observar as balizas constitucionais (https://www.conjur.com.br/2024-jul-24/securitizacao-das-dividas-ativas-no-mercado-breve-analise-da-lc-no-208-2024/). É necessário conceber como nosso Direito Financeiro acomoda a nova securitização. Por exemplo, o art. 11 da Lei Complementar 148/2014 (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp148.htm#art11) é bastante claro ao estabelecer que “é vedada aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a emissão de títulos da dívida pública mobiliária”. A norma existe, pois, no passado, a emissão de valores mobiliários pelos municípios foi acompanhada por altos custos de transação e até mesmo da prática de ilícitos em certos casos, tais como no chamado “escândalo dos precatórios” (https://www.conjur.com.br/2000-dez-06/conheca_decisao_condenatoria_precatorios_sp/). EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL Então, o extraordinário conjunto de vedações ao endividamento dos municípios seria ou não apenas pânico dos burocratas sem real razão de ser? De um lado, é claro que a simples possibilidade de emissão de títulos municipais não conduz inexoravelmente à certeza de que haverá malfeito. Tome, por exemplo, os Estados Unidos, em que o mercado de títulos estaduais e municipais é tão consolidado que há diversos índices de acompanhamento. A conhecida agência Standard and Poor’s dispõe até mesmo de um painel para eles (https://www.spglobal.com/spdji/en/index-family/fixed-income/us-municipal/ ). Estamos falando, entretanto, de um Direito Financeiro muito diferente do nosso. Por lá, os governos subnacionais quebram, e estão sujeitos a recuperação judicial similar àquela das empresas privadas (chapter 9 do U.S. Bankrupcy Code de 1978), bem como podem se comprometer contratualmente à manutenção de certas taxas de cobertura do serviço da dívida pela receita, ou outras cláusulas específicas de default que seriam impensáveis no direito brasileiro…. Read more »

107 anos e contando, por Luiz Henrique Lima

Esta semana completaram-se 107 anos da criação de um dos cargos mais nobres, mais exigentes e mais desconhecidos da administração pública brasileira. Trata-se do cargo de Ministro Substituto do Tribunal de Contas da União, cuja correspondência, na esfera estadual, é Conselheiro Substituto do Tribunal de Contas. O cargo, então denominado Auditor do Tribunal de Contas, foi criado pela Lei 3.454/1918, especificamente no seu artigo 162, inciso XXVII, parágrafo segundo, letra b), com a competência de relatar os processos de contas perante a Câmara de julgamento do TCU, além de substituir os Ministros em suas faltas e impedimentos. A relevância da atuação dos seus ocupantes impôs crescenteprestígio no ordenamento jurídico, ao longo de diversasreformulações legais da atuação dos órgãos de controle, culminando na sua elevação à estatura constitucional em 1988. O título de Auditor origina-se da nomenclatura à épocaempregada para designar certas espécies de magistrados, mas que hoje subsiste apenas, de modo limitado, na Justiça Militar e na Desportiva. Atualmente, o termo auditor identifica o profissional responsável por planejar e executar trabalhos de auditoria e fiscalização, nas esferas pública e privada. Assim, especialmente a partir de 1988, consagrou-se a denominação Ministro ou Conselheiro Substituto. Como dito, trata-se de um dos cargos mais nobres, mais exigentes e mais desconhecidos da administração pública brasileira. A nobreza deriva da elevada responsabilidade atribuída a tais profissionais, que, além de presidirem, relatarem e apresentarem propostas de votos em processos de grande relevância e materialidade envolvendo a gestão de recursos públicas, devem estar permanentementedisponíveis para acumular tais funções com a substituição de ministros e conselheiros, em virtude de ausências, licenças, vacância ou outros afastamentos legais, podendo tais substituições limitar-se a um único processo, no qual ocorra suspeição ou impedimento, ou prolongar-se por vários meses e até anos. A exigência decorre do rigoroso e disputado concurso público obrigatório para alcançar o cargo, com a participação de centenas de candidatos para cada vaga e sucessivas etapas de provas objetivas, discursivas, orais e de títulos, bem como de rígidos filtros de conhecimentos acadêmicos, experiências profissionais anteriores e ficha limpíssima de antecedentes judiciais. Tais concursos exigem uma inigualada completude de saberes, muito além das disciplinas jurídicas, alcançando as ciências econômicas, contábeis, estatísticas e de administração. O desconhecimento, por sua vez, advém em parte do pequeno contingente de integrantes da carreira, sendo três ministros substitutos no TCU e pouco mais de uma centena em todas as demais cortes de contas. Não raro, tal desinformação alimenta situações contraditórias e decisões, em diversas instâncias, que contrariam a estaturae a independência constitucional da magistratura de contas. Felizmente, o Supremo Tribunal Federal, em sucessivas decisões unânimes, tem fixado uma robusta jurisprudênciade reconhecimento da dignidade deste cargo constitucionale de suas garantias e atribuições. E todos aqueles que examinam o panorama do controle externo brasileiro identificam o extraordinário papel que tem sido desempenhado por tais profissionais, contribuindo para a detecção de fraudes, correção de rumos e melhoria dos resultados das políticas públicas. Sua qualificação acadêmica tem sido determinante para a modernização dos procedimentos de fiscalização e a evolução jurisprudencial dos órgãos de controle, cada vez mais concentrados em atuações preventivas e de orientação aos gestores públicos. Parabéns aos colegas Ministros e Conselheiros Substitutos, em exercício ou aposentados, pelos 107 anos percorridos e pelos próximos!   Luiz Henrique Lima é professor e Vice-presidente de Controle Externo da AUDICON – Associação Nacional de Ministros e Conselheiros Substitutos dos Tribunais de Contas.

É sempre o orçamento, por Luiz Henrique Lima

Novo Ano e eu de volta com um velho assunto: o orçamento público. Lamento, mas é assim. Quando uma questão não é resolvida a tempo e a contento, o problema se arrasta, se agrava e se complica. É o que tem acontecido com os orçamentos públicos no Brasil. As distorções têm aumentado, em materialidade e relevância, e crescem exponencialmente os riscos para a governança das políticas públicas essenciais. Mais uma vez, um ano inicia e o país não tem uma lei orçamentária aprovada. Uma análise rasteira e apressada pode culpar o Legislativo e o seu insaciável apetite por emendas de quermesse, ou o Executivo, que ainda não consegue estabelecer um padrão de relacionamento republicano com os parlamentares, ou ambos e, ainda, o Judiciário, hoje ator ativo nessa discussão. Culpar é fácil, mas não agrega compreensão das raízes do problema, tampouco auxilia no desenho de soluções. O fato é que as leis orçamentárias – incluindo o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual – são as leis mais importantes do país, do estado e do município, abaixo apenas da Constituição. Com efeito, a questão orçamentária é central na democracia. Decidir como serão aplicados pelos governos os recursos arrecadados dos cidadãos mediante a cobrança de impostos é uma das principais atribuições dos representantes eleitos do povo. E a nossa Constituição estabeleceu regras, princípios e prazos muito claros e corretos para a elaboração e a execução dos orçamentos. Entre tais princípios, merecem especial atenção, no momento, os do planejamento e da transparência. Ambos têm sido destroçados. De um lado, pelo Poder Executivo que insere nas leis anuais dispositivos que lhe autorizam previamente remanejar créditos orçamentários suplementares de uma dotação para outra em montantes por vezes superiores a dez por cento do orçamento global, representando verdadeiros “cheques em branco”. De outro, pelas emendas parlamentares que não guardam compromisso senão com o atendimento de compromissos individuais de seus autores que, embora legítimos em tese, no seu conjunto produzem uma barafunda de dificílimo controle e responsabilização e muito duvidosa efetividade e economicidade. Há tempos venho denunciando a desconstrução do orçamento brasileiro. Nos últimos cinco anos, foram nada menos do que doze emendas constitucionais alterando mais de uma centena de normas “permanentes”, que deveriam primar pela estabilidade. Muitos subestimam o tema, por considerá-lo excessivamente técnico. É um grave equívoco. O processo orçamentário é, essencialmente, um debate político fundamental sobre as prioridades nacionais e a distribuição de renda e encargos. Desmoralizar o orçamento é fragilizar a democracia. Reduzir a sua transparência é potencializar a ineficiência e a corrupção. Evitar essa discussão é falhar com o futuro e custará muito para o país.   Luiz Henrique Lima é professor e conselheiro independente certificado.

As contas de Beltrano, por Luiz Henrique Lima

Não é raro ouvir, aqui ou acolá, um comentário crítico questionando a aprovação ou a reprovação das contas desse ou daquele gestor. Geralmente tais observações são guiadas pela simpatia, antipatia, identificação ou rejeição em relação ao governante. Quando a pessoa se identifica com as suas ideias ou concorda com seus projetos, considera que o dever do tribunal de contas é o de aprovar e aplaudir o referido mandatário. De outro lado, quando se é oposição, exige-se que as contas sejam sumariamente reprovadas e os administradores penalizados com o rigor máximo autorizado pela lei. Mas não é assim que deve ser. O juízo deve ser técnico e imparcial. A incompreensão sobre o papel dos tribunais de contas não é recente. Em 1888, dois anos antes da criação do Tribunal de Contas da União, no seu romance ‘Os Maias’, Eça de Queiroz colocou na boca do personagem Carlos uma indagação que até hoje é compartilhada por muitos: “Que diabo se faz no Tribunal de Contas?” E a resposta do personagem Taveira traz a marca irônica do romancista português: “Faz-se um bocado de tudo para matar o tempo. Até contas.” É a palavra “contas” que gera alguma confusão. Numa acepção mais comum, “contas” remete a operações aritméticas, como adição, subtração, multiplicação e divisão. Um responsável por fraude nas contas seria alguém que manipularia os dados numéricos, ao subestimar receitas ou superfaturar pagamentos. Em outra perspectiva ultrapassada, analisar as contas limitar-se-ia à verificação da exatidão dos demonstrativos contábeis dos órgãos públicos, tais como balanços orçamentário, financeiro e patrimonial. Na realidade, quando apreciam ou julgam as contas de determinado administrador os órgãos de controle consideram um universo muito maior de dados. “Contas” é a denominação de um conjunto de informações que se possa obter, direta ou indiretamente, a respeito de uma dada gestão, desde que garantida a sua confiabilidade e permitida a avaliação da legalidade, legitimidade, eficácia, eficiência e economicidade dessa gestão. Tais informações não são restritas a documentos contábeis, mas também envolvem relatórios de gestão, indicadores de desempenho na execução de políticas públicas etc. Assim, no contexto do direito público, do controle externo e da auditoria governamental, “contas” é muito mais que um conceito contábil ou aritmético. Por isso, em diversos países os órgãos de controle começam a ser designados como tribunais da governança pública, cujas avaliações ponderam, para além da regularidade da arrecadação e da despesa públicas e da legitimidade e economicidade das ações governamentais, os resultados alcançados na consecução de objetivos programáticos e na concretização de direitos fundamentais, como a educação, a saúde, a segurança e a proteção ao meio ambiente. Os crescentes desafios de uma sociedade em acelerada transformação, em virtude, entre outros fatores, das inovações tecnológicas e mudanças climáticas, exigem que as instituições de controle, em todos os níveis, atuem com maior independência, imparcialidade e tempestividade, bem como com elevada qualidade e capacitação técnica e, ainda, inquestionável integridade dos seus servidores e magistrados.   Luiz Henrique Lima é professor e conselheiro substituto do TCE-MT.